domingo, 2 de fevereiro de 2014

Uma passagem secreta

Às vezes sou uma pessoa complicada. Só às vezes. Ontem à noite, depois de jantar (que por acaso estava mesmo saboroso - lombo no forno com batata, tudo produtos caseiros, apenas azeite, sal e um pimenta q.b. a temperar... hum, delícia), fui ter com uns amigos. Não posso dizer que fui ao café porque aquele sítio tem sete definições diferentes nos toldos à entrada, não posso dizer que fui beber café porque bebi duas médias, não posso dizer que fui beber uma cerveja porque na mesa estavam cafés, Pepsi, chocolates quentes... Enfim, saí de casa por uns tempos.

E nesse café/beer lounge/snack-bar/sei lá o quê mais é preciso percorrer três divisões, passar à porta da cozinha e não entrar na arrecadação, atravessar um corredor com pouca luz e rezar para que não esteja nenhum estripador escondido num canto escuro, para ir ao WC verter líquidos. Eu arrisquei-me, não por opção mas por necessidade. Contudo, a viagem não correu tão bem como esperava. A meio da viagem, as luzes começaram a rodar à volta da minha cabeça, na parede abriu-se um portal e eu fui sugado para outra dimensão.

Acordei com a cara na lama, ao lado de um lago. Levantei-me, sacudi a roupa e olhei em redor. Ao longe avistei uma nuvem de fumo. Tive receio mas fui nessa direcção, onde há fumo há fogo, onde há fogo costuma haver gente. Caminhei até lá, sempre com o lago à minha esquerda. Paisagem magnífica, água cristalina, do meu lado direito apenas floresta, relva verde debaixo dos meus pés. Não havia ninguém junto da fogueira, apenas um caldeirão com água a ferver e um peixe espetado num pau, um pargo, pensei eu. Tive medo de chamar por alguém, podiam ser bandidos ou foragidos. Já li muitos livros e essa hipótese costuma ser a mais frequente. Deambulei pelas redondezas, apenas se ouvia o canto dos pássaros e as folhas das árvores a dançar ao som do vento. Não fui de meias medidas, tinha fome e tirei o pargo de cima da brasa. Era saboroso, faltava-lhe apenas uma pitada de sal. Comi num ápice, com apetite e com medo que os donos do peixe surgissem do meio da vegestação. Tal não aconteceu e tive de seguir em frente, à deriva, à procura de uma aldeia ou de alguém que me pudesse explicar onde me encontrava. Continuei a passear à beira do lago, estava maravilhado com a clareza da água. Soubesse eu nadar e ia dar um mergulho, estava calor, o sol brilhava bem alto, o dia ainda ia a meio. Ouvi vozes, parei, escondi-me atrás de um pedregulho e fiquei à espreita. Um grupo de três homens se aproximava da fogueira. Pareciam bandidos, roupas sujas e rasgadas, o pargo devia ser o almoço deles. Encolhi-me o máximo que pude e tentei suster a respiração. Um deles, o mais baixo, gritava improprérios indecifráveis, possivelmente contra o ladrão que lhes tinha roubado a iguaria. O meu coração batia a mil, estavam a menos de duzentos metros e conseguia sentir-lhes o cheiro, já não deviam tomar banho há alguns dias. Eles continuavam a olhar em redor, à procura de alguém, à minha procura. Olhei na direcção contrária, a floresta estava a poucos metros e, uma vez aí embrenhado, seria difícil me encontrarem. Esperei pelo momento certo e dei uma corrida para o meio das árvores. Nem olhei para trás para confirmar se a minha fuga tinha sido bem sucedida, corri o mais que pude, sem olhar para trás, evitando rastos ou indícios de velhos caminhos. Corri durante segundos, minutos, vários metros, pelo meio das árvores e do mato. Até que parei numa clareira. Não tinha noção de quantos metros tinha percorrido, talvez quilómetros. O lago tinha ficado para trás, nem sinal dos bandidos. Baixei a cabeça e inspirei o máximo de ar possível, só entei reparei que estava ofegante. Precisava descansar, ninguém me tinha seguido, tentei escutar mas o bater do meu coração era muito forte. De repente, senti uma picada no peito, outra picada no ombro, olhei para baixo, tinha duas setas espetadas na minha carne. Tentei gritar mas faltaram-me as forças, cai de joelhos, as folhas começaram a agitar-se, alguém falou e duas sombras entraram na clareira. Duas mulheres, cabelo loiro a cair pelas costas, orelhas pontiagudas, uma delas empunhava um arco e uma seta apontada na minha direcção, senti a vista turvar, tentei levantar um braço e dizer que não lhes queria fazer mal mas não tive forças, tombei para a frente e fechei os olhos.


Quando acordei, estava à porta do WC. Achei estranho. Nem verti líquidos, dei meia volta aos sapatos e dei de frosques. Acho que tão cedo não volto lá. Hoje reparei que tinha uma ferida no peito, não deve ser nada...

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